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Desde muito novas, as crianças escutam histórias de fantasia e descobrem o mundo do “faz de conta”. Ao crescer, muitas delas buscam continuar suas aventuras fictícias em novos lugares. Assim, a comunidade de fãs encontrou uma forma de juntar o faz de conta aos ídolos, fazendo com que a magia passe do papel para as telas de computadores e celulares. As fanfictions entram nesse cenário após a digitalização das fanzines – que originalmente eram escritas em revistas – e histórias de fãs para fãs passam a ser criadas.

É através das fanfics que grande parte dos jovens de hoje em dia se conectam pela

primeira vez com a leitura, tal qual as histórias de princesa na infância. Seja buscando um final para uma série cancelada ou pelo desejo de conhecer seu ídolo e viver um romance com o mesmo, as fics se tornam um abrigo para seus leitores. A autora e leitora Graziela Santos, 26, conta que teve seu primeiro contato com esse formato de história ainda na pré-adolescência: “Eu tinha 12 ou 13 anos e a primeira [fic] que eu li foi uma fanfic de

Crepúsculo e na época era super bombado. Foi quando eu conheci a fanfic interativa porque tinha como a gente se colocar dentro da história [colocando o próprio nome na personagem principal] e é óbvio que eu queria viver o meu romance com o Edward.”

 

Diferente de um universo criado do zero, que muitas vezes só encontramos em livrarias, as fanfictions são de fácil acesso para qualquer pessoa com internet em suas mãos. É fato que, com o constante crescimento da tecnologia, grande parte dos livros publicados fisicamente também possuem versões em e-books. No entanto, as histórias feitas por fãs, na maioria das vezes, não demandam condições financeiras de seus leitores, já que são publicadas em portais públicos da web.  

A identificação é outro fator que aproxima muito os jovens leitores dos contos produzidos por fãs. Na sociedade atual, a questão da representatividade em produções audiovisuais e na literatura é muito discutida. Em pleno século XXI, sabemos que esse tópico é visivelmente mais abordado do que em outras épocas, mesmo que muitas pessoas ainda sintam que não é o suficiente. As fanfics são conhecidas também por explorarem muito esse sentimento.

A comunidade LGBTQIAP+ conecta-se facilmente com o universo literário dos fãs, uma vez que essas histórias são mais abertas à diversidade. Segundo o site do Wattpad, portal de fanfics, cerca de 400 mil histórias com temática envolvendo questões LGBTs foram publicadas. Outro portal muito usado pelos fãs é o Spirit. Nele, consta que mais de 26 mil histórias com a temática estão no site. “[...] Mesmo sem ainda me entender Bissexual e Demissexual, eu passei a entender que eu gostava daquilo [nas histórias]”, diz Ana Maria, que assina suas obras como Arquelana, leitora e autora do universo das fics. 

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Para Ana, que tem 21 anos, no meio LGBTQIAP+, as fanfictions são divisores de água, ajudando os jovens a se entenderem e, muitas vezes, se sentirem acolhidos. Entre os anos de 2012 e 2016, no meio do mundo da cultura pop, as histórias e teorias criadas sobre um possível envolvimento entre Harry Styles e Louis Tomlinson, membros da ex-boyband britânica One Direction, se tornaram extremamente populares. No Wattpad, as histórias criadas envolvendo os dois passam de 54 mil. Apesar de os cantores nunca terem declarado se o casal realmente existiu, as fanfics se tornaram febre entre os adolescentes após os rumores da relação, e muito desse ocorrido se deve a vontade de se sentir representado, já que cantores assumidamente homossexuais ainda eram minoria na indústria. 

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Arquelana na Bienal do Livro com seu livro Querida Penelope. Foto: Arquivo pessoal

Site Wattpad com leituras de fanfictions de Louis Tomlinson e Harry Styles. Foto: Isabella Machado

Tal criatividade se expande para as mais diversas áreas e gostos, trazendo os jovens para mais perto da literatura, uma vez que esses leitores encontram seu lugar em novas histórias. Para João Eduardo, estudante e leitor de 20 anos, as fanfics são ótimas portas de entrada para o hábito da leitura. “Antes das fics eu não tinha muito esse hábito [de leitura]. Como elas são de fácil acesso e existem várias temáticas diferentes, é difícil não achar algo que te agrade. E uma vez que você encontra o seu gênero favorito, fica mais fácil de achar novos livros”, conta João.

A literatura é uma parte fundamental na formação do ser humano. É através dela que despertamos a criatividade e impulsionamos sonhos e objetivos. Sobre o papel das fanfictions no hábito de leitura de jovens, a jornalista e especialista Mariana Rodrigues diz acreditar que elas são uma boa forma de se iniciar o costume.

Muitos universos de fantasias ficaram famosos mundo afora, e com um grande número de pessoas compartilhando o mesmo interesse, a aproximação acontece naturalmente. Com as fanfics não foi diferente. Quando perguntados, a maioria dos jovens entrevistados contou que começou a ler as histórias junto com amigos. “Eu lembro que eu li com umas amigas. A gente se juntava para ler fanfic - bem coisa de adolescente ‘eu não tenho o que fazer né?’ É, saudades, inclusive”, relembra a autora e leitora Graziela de forma nostálgica. 

Além de conectar os fãs com seus ídolos e universos favoritos, as fanfics ligaram muitas pessoas pelo mundo. As redes sociais já fazem esse trabalho de ligar pessoas independente da distância, e nos portais de fic a mesma função foi adicionada. Luisa Kiyoko, leitora do gênero de 23 anos, conta que conheceu suas melhores amigas através das plataformas digitais para leitura e que muitas delas nem moram no Brasil. “Sempre foi algo muito natural, de certa forma. Por exemplo, minha amiga inglesa foi minha primeira amiga virtual. Eu adorava as fanfics dela e nós já nos seguíamos no Tumblr. Até que um dia mandei uma mensagem e nós começamos a conversar. Quando fiz meu intercâmbio para Portugal, ela foi até lá para me visitar", detalha Luisa. 

O hub de criação e conteúdo da Press Pass, Fresh People, produziu um texto falando sobre a cultura fangirl e a misoginia que diz que “produtos culturais são essenciais na construção de uma identidade própria, auxiliando no processo de autodescoberta inerente à adolescência. Manifestar nossos gostos pessoais e compartilhar esse momento com pessoas que sentem o mesmo é essencial para a construção de um senso de comunidade, primordial no momento de inseguranças e questionamentos da juventude”.

Se antes existiam os clubes do livro para juntar pessoas que leem o mesmo livro e comentam, hoje existem os portais de fics que fazem exatamente essa função. Até mesmo nichos específicos de leitores nas redes sociais surgiram com a modernidade. Denominados “booktok”, "bookstagram" e ''booktube”, as comunidades de leitores ganharam grande espaço no entretenimento online. Por mais que o espaço seja utilizado não só para fanfics, muitas obras de fãs surgem e se popularizam dentro dessas redes.

Luisa Kiyoko e Sarah. Foto: Arquivo pessoal de Luisa Kiyoko

Só no Tiktok existem cerca de oito bilhões de visualizações na hashtag BooktokBrasil, de acordo com a própria rede (números do dia 8 de novembro de 2022). O grande interesse pelo conteúdo literário conseguiu aproximar pessoas e formar amizades.  Giuliana Maestrini, escritora de fanfics de 23 anos, sentiu necessidade de se aproximar de suas leitoras enquanto publicava suas histórias e criou um grupo no WhatsApp para cumprir esse objetivo. “Eu sempre senti que faltava algo, sabe? Minhas leitoras comentavam no Wattpad que queriam alguém para conversar sobre a história. Então decidi criar esse grupo para termos essa troca”, conta. 

Com a proximidade das pessoas e a popularização das histórias, as fanfictions conquistaram um grande espaço, tanto no universo literário quanto nas mídias sociais. O Wattpad acumula cerca de mais de 90 milhões de leitores e escritores, em mais de 50 idiomas. No entanto, mesmo com todo o sucesso, surgiram também as críticas e pré-julgamentos envolvendo o novo gênero.  

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Existe um grande preconceito da sociedade ao falarmos em fanfics. Muitas pessoas acreditam que por serem histórias escritas por fãs e muitas vezes amadoras, as fanfictions têm uma qualidade inferior se comparadas a livros publicados. Cada vez mais, escritores dessas histórias vêm provando que em grande parte das vezes esse não é o caso.

Ao falarmos sobre números, os autores entrevistados são destaque nas redes sociais de fanfictions. Giuliana Maestrini, autora de The Princess of Killers, fanfic dedicada a One Direction, acumula cerca de dez mil seguidores em seu perfil no Wattpad e mais de um milhão de leitores na sua história, segundo o próprio portal. Sabemos que quantidade não é sinal de qualidade, mas é inegável que as fanfictions são um dos grandes sucessos deste século.

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Giuliana Maestrini e Ana Maria - Foto: Arquivo pessoal de Giuliana Maestrini

As histórias mais populares saíram das telas e do papel para o cinema e streamings. After, 50 Tons de Cinza e até mesmo a série da Netflix Shadowhunters são a prova do sucesso desse gênero. Os contos que os fãs criaram, sem pretensão alguma de virarem famosos, se tornaram grandes acertos mundiais do cinema.

 

As fanfics aproximam os fãs da leitura, não só por serem escritas na internet, mas por trazerem uma narrativa que os interessa de verdade. Se uma pessoa é fã de Harry Potter, por exemplo, ela vai procurar histórias que a permita “entrar” no universo mágico novamente. Com essa aproximação, muitos leitores que começaram nas fanfics passam a explorar o mundo dos livros, encontrando novas histórias que possam despertar o mesmo interesse que as fics afloraram.

Fanfic “All The Young Dudes”, do universo de Harry Potter Foto: Laura Rufino

No início dos anos 2000, a popularização da fanfiction começa a se tornar realidade. Com a banda McFly e os livros e filmes da saga de Harry Potter, os fãs sentiram a necessidade de ir além e começar a consumir ainda mais conteúdos que os agradavam. Revistas, livros, CDs e DVDs já não eram mais suficientes para suprir o interesse do fã, o desejo de poder participar da vida de seus ídolos ou de fazer parte de um universo de fantasia ficou cada vez maior. 

Graziela Santos, autora de Não Se Apaixone Pela Sua Namorada, conseguiu realizar ainda mais esse sonho de estar perto de quem admira. Depois do sucesso do livro, que tem como inspiração o cantor Dougie Poynter da banda McFly, Graziela conseguiu que o cantor autografasse uma cópia e também pediu que sua amiga de Porto Alegre entregasse um livro para o mesmo. A banda estava em turnê pelo Brasil e a autora foi atrás de conquistar seu objetivo e buscou encontrar o cantor. 

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O preconceito aparece quando, ao realizar seu sonho, a autora é muitas vezes taxada de “maluca” ou “emocionada”. No mundo do futebol, quando um torcedor conquista a vontade de receber uma camiseta autografada por seu jogador favorito, é intitulado “vencedor”. Por que o sonho da autora vale menos que o do torcedor? 

A maior parte do público fanfiqueiro é formado por mulheres e pessoas LGBTQIAP+ e é daí que nasce o pré-julgamento. Por se tratarem de histórias com temáticas, na maioria das vezes, românticas, as fanfics são tidas como infantis, bobas e irrelevantes. As pessoas que consomem esse tipo de conteúdo são chamadas de obcecadas, doidas, histéricas, entre outros estereótipos pejorativos. 

Livro Não Se Apaixone Pela Sua Namorada de Graziela Santos (Arquivo pessoal de Graziela Santos)

Felipe Sali, escritor e leitor de fanfics de 30 anos, é um homem hétero e contou um pouco sobre como é o estereótipo quando falamos desse gênero literário. “No começo, quando eu entrei era uma coisa bem feminina e era um momento em que o machismo era muito menos desconstruído, então as pessoas ficavam ‘cara, tem um garoto aí escrevendo fanfic, lendo fanfic, o que que ele está fazendo, o que que está acontecendo?’ Eu acho que, hoje em dia, com as gerações novas surgindo com uma mentalidade diferente, tem menos essa questão, esse preconceito, estereótipo. Tem mais rapazes lendo, mais rapazes escrevendo e isso é ótimo também”, diz.

Se as fanfics fazem tão bem às pessoas, unindo, acolhendo e transformando a vida de jovens do mundo todo, por que a sociedade segue julgando quem lê esse gênero? Por que os fãs de elementos da cultura pop são menosprezados enquanto fãs de esportes são cada vez mais exaltados? 

As pessoas se acostumaram a julgar tudo que lhes parece diferente e nos dias de hoje é “cool” zoar fãs e especialmente fanfics. Os leitores seguem consumindo esse tipo de conteúdo para mostrar, cada vez mais, que as fics vieram para ficar!

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